No dia em que rezamos por todos os falecidos é importante sabermos um pouco mais sobre a doutrina do Purgatório... Eis um texto bastante esclarecedor:
Purgatório
O ensinamento da Igreja sobre o “purgatório” é parte constituinte do “Depositum Fidei” (Depósito da Fé). Há muitos desinformados e outros, mal intencionados, que alardeiam que tal artigo doutrinal teria sido elaborado tardiamente na Igreja Católica.
Convém antes de tudo compreender o significado do termo “purgatório”, para depois encontrar nas Escrituras e na Tradição textos que fazem referências a essa realidade escatológica. Essa palavra de origem latina trás em si a idéia de um ambiente, no qual é possível alcançar uma purificação, de tornar algo puro, de limpar algo. Uma vez entendendo que o “purgatório” está relacionado com uma purificação póstuma (depois da morte), aí sim, ir ao encontro das referências bíblicas sobre esse evento. Pois na elaboração dos textos bíblicos não foi utilizada a palavra latina “purgatorium” (purgatório), primeiramente pelo fato de os idiomas desses textos terem sido o hebraico, aramaico e o grego. Desta maneira, quando os autores sagrados quiseram fazer referência a “purificação póstuma”, utilizaram outros termos para expressar esse mesmo conceito. E em segundo lugar, a palavra “purgatorium” foi utilizada na língua latina somente a partir do fim do século IV, com o gramático e filósofo Macróbio.
Referências a essa purgação “post-mortem” encontramos em todas as culturas, o que seria já uma evidência das “Sementes do Verbo”, as quais segundo os santos padres (os sistematizadores do pensamento teológico cristão) seriam elementos inspirados pelo Espírito Santo a todos os povos, para predispô-los a acolher o Evangelho. Nessa pedagogia divina, a Revelação ao povo de Israel encontra um lugar de destaque, assim, encontramos tanto no cânon do Antigo Testamento (II Mac 12, 38-46) como na liturgia hebraica (oração de “kadish”) referências ao sufrágio pelos falecidos.
Sendo o Cristianismo, herdeiro e cumprimento da “antiga Aliança” (cf. Mt 5,17), os aspectos escatológicos (as verdades últimas) de outrora passam a ser mais bem compreendidos e iluminados pela luz da auto-revelação de Jesus Cristo. Desde modo, já em suas pregações e parábolas encontramos o conceito de uma purificação após esta vida, mas sem utilizar a palavra “purgatório” (cf. Mt 5,25-26;18, 23-35).
Nas Cartas de São Paulo Apóstolo, encontramos referências sobre tal “purificação”, para a qual ele usa a alegoria do fogo, pois desde tempos imemoriais o fogo era e é utilizado para limpar e desinfetar locais e objetos (cf. I Cor. 3, 10-15). Tal purificação encontra nos Evangelhos a sua fundamentação, pois o próprio Jesus disse que, “bem-aventurados os corações puros, porque eles verão a Deus” (Mt. 5,8) e ainda compara os puros de coração, ou os que tiveram seus corações purificados por uma vida de “conversão” (teshuvá – retorno a Deus; metanóia – mudança de mentalidade) à simplicidade das crianças (cf. Mc 10, 13-16). Essa providencial purgação tem como objetivo de aperfeiçoar os filhos de Deus, torná-los perfeitos pela superação de suas debilidades existenciais, para então poderem tomar parte plenamente das Bodas eternas (cf. Mt. 22, 8-14; Lc 14, 15-24).
Nas catacumbas romanas de Priscila e Áquila, há uma série de pedidos dos primeiros cristãos por sufrágios pelos falecidos, os quais puderam ser datados como sendo do século II dC. Também as pesquisas arqueológicas corroboram com esse ensinamento da Igreja, como pode-se perceber com o famoso “Epitáfio de Abércio”, bispo do século II dC, o qual mandara escrever em sua lápide um pedido, para que o seu rebanho se recordasse de rezar pelo descanso de sua alma. Esses são apenas alguns testemunhos.
Na patrística, vêem-se referências a essa “purificação”, sem utilizar, contudo, a palavra “purgatório”, como se pode ler nas obras de Tertuliano, São Cipriano e também nas “Atas de martírio de São Perpétuo de Cartago” - três importantes referências da Igreja no norte africano durante o séc III; nas obras de Orígenes - de Alexandria, Egito, séc. III; em São João Crisóstomo e São Gregório de Nissa - expoentes da Igreja Bizantina, séc. IV; nos escritos de Santo Agostinho – Hipona, África, séc. IV) etc.... Como se percebe, tal concepção era comum a todas as Comunidades Cristãs da Antiguidade.
Há ainda o testemunho de antigos textos litúrgicos sobre a oração em sufrágio aos fiéis falecidos, como pode ser encontrado na “Didascalia” (séc. III), nos “Cânones de Hipólito” (séc. III), nas codificações litúrgicas do Bispo São Serapião de Tmuis (séc. IV), bem como nas chamadas “Constituições Apostólicas” (séc. IV).
A crença em um estado de purificação após a morte era algo pacífico entre os primeiros cristãos. Somente quando no segundo milênio, vozes se ergueram para contestar essa verdade de fé, é que a Igreja Latina viu-se obrigada a pronunciar-se “ex-catedra” (com a autoridade de Pedro) para defender a integridade do “Depósito da Fé”. Tais definições dogmáticas deram-se durante o II Concílio de Lião (1264), o Concílio de Florença (1438-1445) e no Concílio de Trento (1545-1563). Nesses Concílios apenas reafirmou-se e melhor buscou-se compreender essa realidade escatológica, que então era contestada. O próprio Concílio Vaticano II discorre sobre a questão do “purgatório” na Constituição “Lumen Gentium”, n. 49-51, o que demonstra a perenidade dos ensinamentos da Igreja.
Algo que é importante frisar, que o “purgatório” constitui um “estado” de purificação, como uma espécie de antecâmara para a visão beatífica. Aqueles que ao término de sua existência terrena puderam com a graça de Deus manter seus corações (afetos, sentimentos etc.) sem apegos (egoísmos, ressentimentos, ganância, avareza etc...), os que na linguagem popular são chamados de “santos”, esses como crianças e na pureza de seu ser, correrão para os braços do Pai Eterno. Os demais que, tendo buscado o Criador em suas vidas, mas que no “juízo particular” (Heb 9,27) apresentarem-se diante de Deus ainda com alguma debilidade, “o Pai das Misericórdias e Deus de toda consolação” (II Cor 1,3) virá em seu auxílio, propiciando a superação dessas limitações, mediante um modo purificador, para poderem participar plenamente da vida eterna.
Por Diácono Mikael (Fábio da Silveira Wagner),
do Exarcado Armênio Católico para a América Latina -São Paulo-SP.
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