«Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras» (Heb 10, 24)
Irmãos e irmãs!
A Quaresma oferece-nos a oportunidade de reflectir mais uma vez sobre o
cerne da vida cristã: o amor. Com efeito este é um tempo propício para
renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho
pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a
partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.
Papa Bento XVI recebendo as Cinzas na Basílica de S. Sabina, Roma-2011. |
1. «Prestemos atenção»: a responsabilidade pelo irmão.
O primeiro elemento é o convite a «prestar atenção»: o verbo grego usado
é katanoein, que significa observar bem, estar atento, olhar
conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade. Encontramo-lo no Evangelho,
quando Jesus convida os discípulos a «observar» as aves do céu, que não se
preocupam com o alimento e todavia são objecto de solícita e cuidadosa
Providência divina (cf. Lc 12, 24), e a «dar-se conta» da trave que têm
na própria vista antes de reparar no argueiro que está na vista do irmão (cf.
Lc 6, 41). Encontramos o referido verbo também noutro trecho da mesma
Carta aos Hebreus, quando convida a «considerar Jesus» (3, 1) como o
Apóstolo e o Sumo Sacerdote da nossa fé. Por conseguinte o verbo, que aparece na
abertura da nossa exortação, convida a fixar o olhar no outro, a começar por
Jesus, e a estar atentos uns aos outros, a não se mostrar alheio e indiferente
ao destino dos irmãos. Mas, com frequência, prevalece a atitude contrária: a
indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência
de respeito pela «esfera privada». Também hoje ressoa, com vigor, a voz do
Senhor que chama cada um de nós a cuidar do outro. Também hoje Deus nos pede
para sermos o «guarda» dos nossos irmãos (cf. Gn 4, 9), para
estabelecermos relações caracterizadas por recíproca solicitude, pela atenção ao
bem do outro e a todo o seu bem. O grande mandamento do amor ao
próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu,
é criatura e filho de Deus: o facto de sermos irmãos em humanidade e, em muitos
casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter ego,
infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos este olhar de fraternidade,
brotarão naturalmente do nosso coração a solidariedade, a justiça, bem como a
misericórdia e a compaixão. O Servo de Deus Paulo VI afirmava que o mundo actual
sofre sobretudo de falta de fraternidade: «O mundo está doente. O seu mal reside
mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na
esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo»
(Carta enc.
Populorum progressio, 66).
A atenção ao outro inclui que se deseje, para ele ou para ela, o bem sob
todos os seus aspectos: físico, moral e espiritual. Parece que a cultura
contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com
vigor que o bem existe e vence, porque Deus é «bom e faz o bem» (Sal
119/118, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a
fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa
querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do
bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas necessidades. A
Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma
espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos sofrimentos alheios.
O evangelista Lucas narra duas parábolas de Jesus, nas quais são indicados dois
exemplos desta situação que se pode criar no coração do homem. Na parábola do
bom Samaritano, o sacerdote e o levita, com indiferença, «passam ao largo» do
homem assaltado e espancado pelos salteadores (cf. Lc 10, 30-32), e, na
do rico avarento, um homem saciado de bens não se dá conta da condição do pobre
Lázaro que morre de fome à sua porta (cf. Lc 16, 19). Em ambos os casos,
deparamo-nos com o contrário de «prestar atenção», de olhar com amor e
compaixão. O que é que impede este olhar feito de humanidade e de carinho pelo
irmão? Com frequência, é a riqueza material e a saciedade, mas pode ser também o
antepor a tudo os nossos interesses e preocupações próprias. Sempre devemos ser
capazes de «ter misericórdia» por quem sofre; o nosso coração nunca deve estar
tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do pobre.
Diversamente, a humildade de coração e a experiência pessoal do sofrimento
podem, precisamente, revelar-se fonte de um despertar interior para a compaixão
e a empatia: «O justo conhece a causa dos pobres, porém o ímpio não o
compreende» (Prov 29, 7). Deste modo entende-se a bem-aventurança «dos
que choram» (Mt 5, 4), isto é, de quantos são capazes de sair de si
mesmos porque se comoveram com o sofrimento alheio. O encontro com o outro e a
abertura do coração às suas necessidades são ocasião de salvação e de
bem-aventurança.
O facto de «prestar atenção» ao irmão inclui, igualmente, a solicitude
pelo seu bem espiritual. E aqui desejo recordar um aspecto da vida cristã que me
parece esquecido: a correcção fraterna, tendo em vista a salvação eterna.
De forma geral, hoje é-se muito sensível ao tema do cuidado e do amor que visa o
bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da responsabilidade
espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não era assim, como não
o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas quais se tem a peito não
só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua alma tendo em vista o seu
destino derradeiro. Lemos na Sagrada Escritura: «Repreende o sábio e ele te
amará. Dá conselhos ao sábio e ele tornar-se-á ainda mais sábio, ensina o justo
e ele aumentará o seu saber» (Prov 9, 8-9). O próprio Cristo manda
repreender o irmão que cometeu um pecado (cf. Mt 18, 15). O verbo usado
para exprimir a correcção fraterna – elenchein – é o mesmo que indica a
missão profética, própria dos cristãos, de denunciar uma geração que se faz
condescendente com o mal (cf. Ef 5, 11). A tradição da Igreja enumera
entre as obras espirituais de misericórdia a de «corrigir os que erram». É
importante recuperar esta dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados
diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos que preferem, por
respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum em vez de
alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que contradizem a
verdade e não seguem o caminho do bem. Entretanto a advertência cristã nunca
há-de ser animada por espírito de condenação ou censura; é sempre movida pelo
amor e a misericórdia e brota duma verdadeira solicitude pelo bem do irmão. Diz
o apóstolo Paulo: «Se porventura um homem for surpreendido nalguma falta, vós,
que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão, e tu olha
para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado» (Gl 6, 1). Neste
nosso mundo impregnado de individualismo, é necessário redescobrir a importância
da correcção fraterna, para caminharmos juntos para a santidade. É que «sete
vezes cai o justo» (Prov 24, 16) – diz a Escritura –, e todos nós somos
frágeis e imperfeitos (cf. 1 Jo 1, 8). Por isso, é um grande serviço
ajudar, e deixar-se ajudar, a ler com verdade dentro de si mesmo, para melhorar
a própria vida e seguir mais rectamente o caminho do Senhor. Há sempre
necessidade de um olhar que ama e corrige, que conhece e reconhece, que discerne
e perdoa (cf. Lc 22, 61), como fez, e faz, Deus com cada um de nós.
2. «Uns aos outros»: o dom da reciprocidade.
O facto de sermos o «guarda» dos outros contrasta com uma mentalidade
que, reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de a considerar na
sua perspectiva escatológica e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade
individual. Uma sociedade como a actual pode tornar-se surda quer aos
sofrimentos físicos, quer às exigências espirituais e morais da vida. Não deve
ser assim na comunidade cristã! O apóstolo Paulo convida a procurar o que «leva
à paz e à edificação mútua» (Rm 14, 19), favorecendo o «próximo no bem,
em ordem à construção da comunidade» (Rm 15, 2), sem buscar «o próprio
interesse, mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos» (1 Cor
10, 33). Esta recíproca correcção e exortação, em espírito de humildade e de
amor, deve fazer parte da vida da comunidade cristã.
Os discípulos do Senhor, unidos a Cristo através da Eucaristia, vivem
numa comunhão que os liga uns aos outros como membros de um só corpo. Isto
significa que o outro me pertence: a sua vida, a sua salvação têm a ver com a
minha vida e a minha salvação. Tocamos aqui um elemento muito profundo da
comunhão: a nossa existência está ligada com a dos outros, quer no bem quer no
mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão social. Na
Igreja, corpo místico de Cristo, verifica-se esta reciprocidade: a comunidade
não cessa de fazer penitência e implorar perdão para os pecados dos seus filhos,
mas alegra-se contínua e jubilosamente também com os testemunhos de virtude e de
amor que nela se manifestam. Que «os membros tenham a mesma solicitude uns para
com os outros» (1 Cor 12, 25) – afirma São Paulo –, porque somos um e o
mesmo corpo. O amor pelos irmãos, do qual é expressão a esmola – típica prática
quaresmal, juntamente com a oração e o jejum – radica-se nesta pertença comum.
Também com a preocupação concreta pelos mais pobres, pode cada cristão expressar
a sua participação no único corpo que é a Igreja. E é também atenção aos outros
na reciprocidade saber reconhecer o bem que o Senhor faz neles e agradecer com
eles pelos prodígios da graça que Deus, bom e omnipotente, continua a realizar
nos seus filhos. Quando um cristão vislumbra no outro a acção do Espírito Santo,
não pode deixar de se alegrar e dar glória ao Pai celeste (cf. Mt 5, 16).
3. «Para nos estimularmos ao amor e às boas obras»: caminhar
juntos na santidade.
Esta afirmação da Carta aos Hebreus (10, 24) impele-nos a
considerar a vocação universal à santidade como o caminho constante na vida
espiritual, a aspirar aos carismas mais elevados e a um amor cada vez mais alto
e fecundo (cf. 1 Cor 12, 31 – 13, 13). A atenção recíproca tem como
finalidade estimular-se, mutuamente, a um amor efectivo sempre maior, «como a
luz da aurora, que cresce até ao romper do dia» (Prov 4, 18), à espera de
viver o dia sem ocaso em Deus. O tempo, que nos é concedido na nossa vida, é
precioso para descobrir e realizar as boas obras, no amor de Deus. Assim a
própria Igreja cresce e se desenvolve para chegar à plena maturidade de Cristo
(cf. Ef 4, 13). É nesta perspectiva dinâmica de crescimento que se situa
a nossa exortação a estimular-nos reciprocamente para chegar à plenitude do amor
e das boas obras.
Infelizmente, está sempre presente a tentação da tibieza, de sufocar o
Espírito, da recusa de «pôr a render os talentos» que nos foram dados para bem
nosso e dos outros (cf. Mt 25, 24-28). Todos recebemos riquezas
espirituais ou materiais úteis para a realização do plano divino, para o bem da
Igreja e para a nossa salvação pessoal (cf. Lc 12, 21; 1 Tm 6,
18). Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança, recua.
Queridos irmãos e irmãs, acolhamos o convite, sempre actual, para tendermos à
«medida alta da vida cristã» (João Paulo II, Carta ap.
Novo millennio ineunte,
31). A Igreja, na sua sabedoria, ao reconhecer e proclamar a bem-aventurança e a
santidade de alguns cristãos exemplares, tem como finalidade também suscitar o
desejo de imitar as suas virtudes. São Paulo exorta: «Adiantai-vos uns aos
outros na mútua estima» (Rm 12, 10).
Que todos, à vista de um mundo que exige dos cristãos um renovado
testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de esforçar-se por
adiantar no amor, no serviço e nas obras boas (cf. Heb 6, 10). Este apelo
ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a Páscoa. Com
votos de uma Quaresma santa e fecunda, confio-vos à intercessão da
Bem-aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo a todos a Bênção Apostólica.
Vaticano, 3 de Novembro de 2011
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