Leia abaixo os Sermões do Pregador da Casa Pontifícia - o Pe. Raniero Cantalamessa, OFM. - pronunciados no Advento de 2011. Nestes, o reverendo abordou o tema da XIII Assembleia Geral Ordinária ("A NOVA EVANGELIZAÇÃO PARA A TRANSMISSÃO DA FÉ CRISTÃ") do Sínodo dos Bispos previsto para acontecer, no Vaticano, em outubro próximo.
Excelentes catequeses! Os textos também ajudarão a viver o Ano da Fé (2012-2013) proclamado por S.S. Bento XVI.Vale à pena lê-las!
02 de dezembro de
2011
Primeira pregação
do Advento de 2011
A primeira ondada de evangelização
Em resposta ao apelo do Sumo Pontífice de um renovado compromisso com a
evangelização e em preparação para o Sínodo dos Bispos de 2012 sobre o mesmo
assunto, me proponho a identificar, nestas meditações do Advento, quatro
ondadas da nova evangelização na história da Igreja, ou seja, quatro momentos
nos quais se testemunham uma aceleração ou uma retomada do compromisso
missionário. São eles:
1. A expansão do cristianismo nos primeiros três séculos de vida, até a
véspera do edito de Constantino, cujos protagonistas, em primeiro lugar, eram
os profetas itinerantes e, depois, os bispos;
2. Os séculos VI-IX, em que assistimos à reevangelização da Europa após
as invasões bárbaras, especialmente pela obra dos monges;
3. O século XVI com a descoberta e a conversão ao cristianismo dos povos
do “novo mundo”, especialmente pela obra dos frades;
4. A época atual que vê a Igreja envolvida numa reevangelização do
Ocidente secularizado, com a participação determinante dos leigos.
Em cada um desses momentos tentarei destacar o que podemos aprender na
Igreja de hoje: quais erros evitar e os exemplos a imitar e quais contribuições
específicas que podem dar à evangelização os pastores, os monges, os religiosos
de vida ativa e os leigos.
1. A difusão do cristianismo nos primeiros três séculos.
Hoje começamos com uma reflexão sobre a evangelização cristã nos
primeiros três séculos. Principalmente um motivo faz deste período um modelo
para todos os tempos. É o período no qual o cristianismo encontra o seu caminho
exclusivamente por própria força. Não há nenhum “braço secular” que o apoie; as
conversões não são determinadas pelas vantagens externas, materiais ou
culturais; ser cristão não é um costume ou uma moda, mas uma escolha contra a
corrente, muitas vezes com risco de vida. Em alguns aspectos, a situação se
voltou a criar hoje em diferentes partes do mundo.
A fé cristã nasce com uma abertura universal. Jesus tinha dito aos seus
apóstolos para irem “ao mundo inteiro ” (Mc 16, 15), para “fazerem discípulos a
todas as nações” (Mt 28, 19), para serem testemunhas “até os confins da terra”
(At 1, 8), para “pregarem a todos os povos a conversão e o perdão dos pecados”
(Lc 24, 47).
A aplicação do princípio desta universalidade já acontece na geração
apostólica, embora não sem dificuldade e lacerações. No dia de Pentecostes a
primeira barreira é superada, a da raça (os três mil convertidos pertenciam a
outros povos, mas eram todos crentes do judaísmo); na casa de Cornélio e no
assim chamado concílio de Jerusalém, especialmente por impulso de Paulo, a
barreira mais difícil de todas foi superada, aquela religiosa que separava os
hebreus dos gentios. O evangelho tem, dessa forma, o mundo inteiro diante de
si, ainda que por agora esse mundo seja limitado, no conhecimento dos homens,
ao Mediterrâneo e às fronteiras do Império Romano.
Mais complexo é seguir a expansão de fato, ou geográfica, do
cristianismo nos três primeiros séculos que, porém, é menos necessária para o
nosso propósito. O estudo mais abrangente, e até agora insuperável a esse
respeito é aquele de Adolph Harnack, “Missão e expansão do cristianismo nos
primeiros três séculos”.
Um aumento acentuado na atividade missionária da Igreja se realiza sob o
imperador Commodo (180-192) e, em seguida, na segunda metade do século III, até
às vésperas da grande perseguição de Diocleciano (302). Este, além das
ocasionais perseguições locais, foi um período de relativa paz que permitiu à
Igreja primitiva consolidar-se internamente e desenvolver um novo tipo de
atividade missionária.
Vejamos em que consiste esta novidade. Nos dois primeiros séculos a
propagação da fé foi confiada à iniciativa pessoal. Tratava-se dos profetas
itinerantes, mencionados na Didaqué, que moviam-se de um lugar para outro;
muitas conversões deveram-se a contatos pessoais, favorecidos pelos trabalhos
comuns exercitados pelas viagens e pelas relações comerciais, pelo serviço
militar e por outras circunstâncias da vida. Orígenes nos dá uma descrição
comovente do zelo desses primeiros missionários:
“Os cristãos fazem todo o esforço possível para espalhar a fé por toda a
terra. Para esse fim, alguns deles se propõem formalmente como tarefa das suas
vidas o peregrinar não somente de cidade em cidade, mas também de município em
município e de vilarejo em vilarejo para ganhar novos fiéis para o Senhor. Nem
se passe pela cabeça, espero, que eles façam isso por lucro, pois até mesmo,
muitas vezes se recusam a aceitar o que é necessário à vida”.
Agora, na segunda metade do século III, estas iniciativas pessoais são
cada vez mais coordenadas e em parte substituídas pela comunidade local. O
bispo, até mesmo por reação aos efeitos de desintegração da heresia gnóstica,
conquista a melhor sobre os mestres, como diretor da vida interna da comunidade
e centro propulsor da sua atividade missionária. A comunidade é agora o sujeito
evangelizador, a tal ponto que um erudito como Harnack, certamente não suspeito
de simpatia pela instituição, possa afirmar: “Devemos ter por certo que a mera
existência e a atividade constante das comunidades individuais foi o principal
fator na propagação do cristianismo”.
No final do terceiro século, a fé cristã penetrou praticamente todos os
estratos da sociedade, já tem sua própria literatura em lingua grega e uma,
embora no início, em lingua latina; possui uma sólida organização interna;
começa a construir edifícios sempre mais amplos, sinal do aumento do número de
fiéis. A grande perseguição de Diocleciano, além das muitas vítimas, não fez
nada mais que destacar o fato de que a força da fé cristã já era irreprimível.
A última luta de braço entre o Império e o cristianismo é testemunha disso.
No fundo, Constantino não vai fazer nada mais do que tomar nota dessa
nova relação de forças. Não será ele que vai impor o cristianismo para o povo,
mas o povo que vai lhe impor o cristianismo. Afirmações como aquelas de Dan
Brown no romance “O Código Da Vinci” e de outros propagadores, segundo os quais
foi Constantino, por razões pessoais, a transformar, com o seu edito de
tolerância e com o concílio de Nicéia, uma obscura seita religiosa judaica na
religião do império, são baseadas numa total ignorância dos fatos que
precederam esses eventos.
2. As razões do sucesso
Um tema que sempre apaixonou os historiadores é aquele das razões do
triunfo do cristianismo. Uma mensagem nascida em um canto obscuro e desprezado
do Império, entre pessoas simples, sem cultura e sem poder, em menos de três
séculos, se estende a todo o mundo então conhecido, subjugando a refinadíssima
cultura dos gregos e o poder imperial de Roma!
Entre as diversas razões do sucesso, alguns insistem no amor cristão e
no exercício ativo da caridade, até torná-lo “o fator mais importante e
poderoso para o sucesso da fé cristã”, de tal forma que induziria mais tarde o
imperador Juliano o Apóstata, a fornecer o paganismo de semelhantes obras de
caridade para combater este sucesso.
Harnack, por outro lado, dá uma grande importância ao que ele chama de a
natureza “sincretista” da fé cristã, ou seja, da capacidade de conciliar em si
as tendências opostas e os diversos valores presentes nas religiões e na
cultura do tempo. O cristianismo se apresenta ao mesmo tempo, como a religião
do Espírito e do poder, que é acompanhada por sinais sobrenaturais, carismas e
milagres, e como a religião da razão e do Logos integral, “a verdadeira
filosofia”, nos dizeres de Justino Mártir. Os autores cristãos são “os
racionalistas do sobrenatural”, diz Harnack citando as palavras do apóstolo
Paulo sobre a fé como “tratamento racional” (Romanos 12,1).
Desta forma o cristianismo reúne em si, num perfeito equilíbrio, o que o
filósofo Nietzsche define o elemento apolíneo e o elemento dionisíaco da
religião grega, o Logos e o Pneuma, a ordem e o entusiasmo, a medida e o
excesso. É isto que, pelo menos em parte, entendiam os Padres da Igreja com o
tema da “sóbria embriaguez do Espírito”.
“A religião cristã – escrevia Harnack no final da sua monumental
pesquisa – , desde o início, apareceu com uma universalidade que a permitiu
reivindicar para si toda a vida inteiramente, com todas as suas funções, as
suas alturas e profundidades, sentimentos, pensamentos e ações. Foi esse
espírito de universalidade que lhe garantiu a vitória. Foi isso que a levou a
professar que o Jesus proclamado por ela era o Logos divino … Assim se ilumina
com nova luz e aparece quase uma necessidade, até mesmo aquela poderosa atração
pela qual chegou a absorver e a submeter a si o helenismo. Tudo o que era de
alguma forma capaz de vida entrou como elemento na sua construção … E essa
religião não deveria vencer? ”
A impressão que se tem ao ler este resumo é que o sucesso do
cristianismo é devido a uma combinação de fatores. Alguns foram tão longe na
busca das causas deste sucesso que encontraram vinte motivos a favor da fé e
muitos outros que estavam agindo na direção oposta, como se o êxito final dependesse
da prevalência do primeiro sobre o segundo.
Agora eu gostaria de destacar o limite inerente a tal abordagem histórica, mesmo quando esta é feita por historiadores que tem fé como aqueles que até agora tenho tido em conta. O limite, devido ao mesmo método histórico, é de dar mais importância ao sujeito do que ao objeto da missão, mais aos evangelizadores e às condições em que ela ocorre, do que ao seu conteúdo.
Agora eu gostaria de destacar o limite inerente a tal abordagem histórica, mesmo quando esta é feita por historiadores que tem fé como aqueles que até agora tenho tido em conta. O limite, devido ao mesmo método histórico, é de dar mais importância ao sujeito do que ao objeto da missão, mais aos evangelizadores e às condições em que ela ocorre, do que ao seu conteúdo.
A razão que me empurra a fazê-lo é que isso é também o limite e o perigo
inerente a tantas abordagens atuais e mediáticas, quando se fala de uma nova
evangelização. Esquece-se de uma coisa muito simples: que Jesus mesmo tinha
dado, antecipadamente, uma explicação da difusão do seu Evangelho e é dessa que
devemos começar toda vez que nos propomos um novo esforço missionário.
Escutemos mais uma vez duas breves parábolas evangélicas, aquela da
semente que cresce também à noite e aquela da semente de mostarda.
“E dizia: ‘acontece com o Reino de Deus o mesmo que com o homem que
lançou a semente na terra: ele dorme e acorda, de noite e de dia, mas a semente
germina e cresce, sem que ele saiba como. A terra por si mesma produz fruto:
primeiro a erva, depois a espiga e, por fim, a espiga cheia de grãos. Quando o
fruto está no ponto, imediatamente se lhe lança a foice, porque a colheita
chegou’.”(Mc 4, 26-30).
Esta parábola, por si só, diz-nos que a razão essencial para o sucesso
da missão cristã não vem de fora mas de dentro, não é obra do semeador e nem
sequer principalmente do solo, mas da semente. A semente não pode ser jogada
por si só, no entanto, é automaticamente e por si mesma que ela cresce. Depois
de ter jogado a semente o semeador pode também ir dormir, a vida da semente já
não depende dele. Quando esta semente é “a semente jogada na terra e morta”, ou
seja Jesus Cristo, nada poderá impedir que essa “dê muitos frutos”. Pode-se dar
todas as explicações que você quiser desses frutos, mas estas permanecerão
sempre na superfície, nunca captarão o essencial.
Quem captou com clareza a prioridade do objeto do anúncio sobre o
sujeito é o apóstolo Paulo.
“Eu plantei, Apolo regou, mas é Deus quem fazia crescer”. Estas palavras
parecem ser um comentário sobre a parábola de Jesus. Não se trata de três
operações com a mesma importância; de fato, o apóstolo acrescenta: ” Assim,
pois, aquele que planta, nada é: aquele que rega nada é; mas imorta somente
Deus, que dá o crescimento”. (1 Cor 3, 6 -7). A mesma distância qualitativa
entre o sujeito e o objeto do anúncio está presente em outra palavra do
Apóstolo: “Mas nós temos este tesouro em vasos de barro, para que este grande
poder seja atribuído a Deus e não a nós” ( 2 Cor 4,7). Tudo isso se traduz nas
exclamações programáticas: “Nós não pregamos a nós mesmos, mas o Senhor Jesus
Cristo!” e ainda “Nós pregamos Cristo crucificado”.
Jesus pronunciou uma segunda parábola com base na imagem da semente que
explica o sucesso da missão cristã e que dever ser tida em conta hoje, diante
da imensa tarefa de reevangelizar o mundo secularizado.
“E dizia: ‘com que compararemos o Reino de Deus? Ou com que parábola o
apresentaremos? É como um grão de mostarda que, quando é semeado na terra – é a
menor de todas as sementes da terra – mas, quando é semeado, cresce e torna-se
maior que todas as hortaliças, e deita grandes ramos, a tal ponto que as aves
do céu se abrigam à sua sombra” (Mc 4, 30-32).
O ensinamento que Cristo nos dá com esta parábola é que o seu Evangelho
e a sua mesma pessoa é a menor coisa que existe sobre a terra porque não há
nada menor e mais fraco do que uma vida que termina numa morte de cruz. No
entanto, esta minúscula “semente de mostarda” está destinada a se tornar uma
grande árvore, de modo a acomodar em seus ramos todos os pássaros que vão
refugiar-se ali. Isso significa que toda a criação, absolutamente toda irá ali
encontrar refúgio.
Que contraste com as reconstruções históricas mencionadas acima! Tudo lá
parecia incerto, aleatório, suspenso entre o sucesso e o fracasso; aqui tudo já
foi decidido e garantido desde o começo! No final do episódio da unção de
Betânia, Jesus pronunciou estas palavras: “Em verdade vos digo que, onde quer
que este Evangelho seja anunciado, em todo o mundo, em memória dela se dirá
também o que ela fez” (Mateus 26,13 ). A mesma consciência tranquila de que um
dia sua mensagem seria anunciada “a todo o mundo”. E certamente não é uma
profecia “post eventum”, porque naquele momento, tudo pressagiava o oposto.
Até mesmo nisso quem melhor captou “o mistério escondido” foi Paulo. Me
impressiona sempre um fato. O Apóstolo pregou no Areópago de Atenas e assistiu
a uma rejeição da mensagem, educadamente expressada com a promessa de ouvi-lo
em outra ocasião. De Corinto, onde ele foi logo depois, escreveu a Carta aos
Romanos, onde afirma ter recebido a tarefa de conduzir “à obediência da fé
todas as nações ” (Rm 1, 5-6). O insucesso não avariou minimamente a sua
confiança na mensagem: “Eu não me envergonho – grita – do evangelho, porque é
potência de Deus para a salvação de todo aquele que crê, do judeu, primeiro,
como do grego” (Rom 1, 16 ). Apóstolo Paulo, dá-nos um pouco “desta tua fé e
desta tua coragem e não nos desanimaremos diante da tarefa sobre-humana que
está diante de nós!
“Toda árvore, diz Jesus, é reconhecida pelos seus frutos” (Lc 6, 44).
Isto é verdade para toda árvore, exceto para a árvore nascida dele, o
cristianismo (e de fato ele está falando aqui dos homens); essa única árvore
não é conhecida pelo fruto, mas a partir da semente e da raiz. No cristianismo
a plenitude não está no fim, como na dialética hegeliana do devir (“o verdadeiro
é o inteiro”), mas está no princípio; nenhum fruto, nem mesmo os maiores
santos, acrescentam algo à perfeição do modelo. Neste sentido tem razão quem
afirmou que “o cristianismo não é perfectível”.
3. Semear e… ir dormir
Aquilo que os historiados das origens cristãs não registraram ou dão
pouca importância é a certeza inabalável que os cristãos da época, pelo menos
os melhores deles, tinham sobre a bondade e a vitória final da sua causa.
“Vocês podem nos matar, mas não nos podem prejudicar”, dizia Justino Mártir ao
juiz romano que o condenava à morte. No final foi essa tranquila certeza que
lhes garantiu a vitória e convenceu as autoridades políticas da inutilidade dos
esforços para suprimir a fé cristã.
É isso o que mais nos acontece hoje: despertar nos cristãos, pelo menos
naqueles que pretendem se dedicar ao trabalho da reevangelização, a certeza
íntima da verdade do que anunciamos. “A Igreja, Paulo VI disse certa vez,
precisa recuperar o desejo, o prazer e a certeza da sua verdade”. Devemos
acreditar, primeiramente nós, em tudo o que anunciamos; mas acreditar
realmente, “com todo o coração, com toda a alma, com toda a mente”. Temos de ser
capazes de dizer com Paulo: “Animados pelo mesmo espírito de fé, como está escrito:
Eu acreditei, portanto, eu falei, nós também acreditamos e, portanto, falamos”
(2 Coríntios 4, 13).
A tarefa prática que as duas parábolas de Jesus nos designam é semear.
Semear com mãos cheias, “no momento adequado e inadequado” (2 Tm 4, 2). O
semeador da parábola que sai para semear não se preocupa com o fato de que algumas
sementes acabem na rua e entre os espinhos, e pensar que aquele semeador, fora
da metáfora, é ele mesmo, Jesus! A razão é que, neste caso, não se pode saber
com antecedência qual terreno se revelará bom, ou duro como o asfalto e
sufocante como um arbusto. Há no meio a liberdade humana que o homem não pode
prever, e Deus não quer violar. Quantas vezes entre as pessoas que ouviram
algum sermão ou leram um determinado livro, verifica-se que quem o tomou mais a
sério e teve a vida mudada era a pessoa que menos se esperava, alguém que
estava ali por acaso, ou até mesmo relutante. Eu mesmo poderia contar dezenas
de casos.
Semear então e depois… ir dormir! Ou seja, semear e depois não estar lá
o tempo todo olhando, quando brota, onde brota, quantos centímetros está
crescendo diariamente. A germinação e o crescimento não é nosso negócio, mas de
Deus e do ouvinte. Um grande humorista Inglês do século XIX, Jerome Klapka
Jerome, disse que a melhor maneira de fazer demorar a ebulição da água numa
panela é aquela de estar de olho nela e esperar com impaciência.
Fazer o contrário é fonte inevitável de ansiedade e de impaciência:
coisas que Jesus não gosta e que ele nunca fez quando esteve na terra. No
Evangelho, ele nunca parece ter pressa. “Não andem ansiosos pelo amanhã, dizia
aos seus discípulos, porque o amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o
seu mal” (Mateus 6, 34).
Neste sentido, o poeta cristão Charles Péguy põe na boca de Deus
palavras que são boas para meditarmos:
“Disseram-me que há homens
Que trabalham bem e dormem mal.
Que não dormem. Que tem falta de confiança em mim.
É quase pior do que
se não trabalhassem mas dormissem, porque a preguiça
Não é pecado maior do que a ansiedade …
Não falo, diz Deus, daqueles homens
que não trabalham e não dormem.
Esses são pecadores, é claro …
Falo daqueles que trabalham e não dormem …
Tenho pena deles. Eles não confiam em mim …
Governam muito bem seus assuntos durante o dia.
Mas não querem confiar-me o governo durante a noite…
Quem não dorme é infiel à Esperança… “.
Que trabalham bem e dormem mal.
Que não dormem. Que tem falta de confiança em mim.
É quase pior do que
se não trabalhassem mas dormissem, porque a preguiça
Não é pecado maior do que a ansiedade …
Não falo, diz Deus, daqueles homens
que não trabalham e não dormem.
Esses são pecadores, é claro …
Falo daqueles que trabalham e não dormem …
Tenho pena deles. Eles não confiam em mim …
Governam muito bem seus assuntos durante o dia.
Mas não querem confiar-me o governo durante a noite…
Quem não dorme é infiel à Esperança… “.
As reflexões realizadas nesta meditação nos levam, em conclusão, a
colocar na base do esforço para uma nova evangelização um grande ato de fé e de
esperança para sacudir de cima qualquer sentimento de impotência e resignação.
Temos diante de nós, é verdade, um mundo fechado no secularismo, inebriado
pelos sucessos da técnica e das possibilidades oferecidas pela ciência,
refratário ao anúncio do Evangelho. Mas era talvez menos confiante em si e
menos refratário ao evangelho o mundo no qual viviam os primeiros cristãos, os
gregos com a sua sabedoria e o Império Romano com o seu poder?
Se houver algo que possamos fazer, depois de ter “semeado”, é “irrigar”,
com a oração, a semente lançada. Por isso terminemos com a oração que a
liturgia nos faz recitar na Missa “para a evangelização dos povos”:
Ó Deus, tu queres que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade; olha quão grande é a tua messe e manda operários, para
que seja anunciado o Evangelho à toda criatura, e o teu povo, reunido pela
palavra de vida e moldado pela força dos sacramentos, prossiga no caminho da
salvação e do amor.
Por Cristo nosso Senhor. Amém.
09 de dezembro de 2011
Segunda Pregação do Advento 2011
A segunda grande onda
evangelizadora após as invasões bárbaras
Nesta
meditação, gostaria de falar da segunda grande onda de evangelização na
história da Igreja, aquela que veio depois da queda do império romano e da
mistura de povos que aconteceu com as invasões bárbaras. Nosso objetivo prático
é ver o que podemos aprender para hoje. Diante da amplitude desse período
histórico e da brevidade imposta por esta meditação, poderemos dar apenas
algumas breves pinceladas.
1. Uma
decisão de época
No fim
oficial do império romano, em 476, a Europa já apresenta há tempos um rosto
novo. No lugar do império único, temos reinos românico-bárbaros. Grosso modo,
partindo do norte, a situação é esta: onde existiu a província romana da
Bretanha, temos os anglos e os saxões; nas antigas províncias da Gália, os
francos; a leste do Reno, os frísios e os alemães; na península ibérica, os
visigodos; na Itália, os ostrogodos e depois os longobardos; no norte da
África, os vândalos. E no Oriente ainda resiste o império bizantino.
A Igreja
se vê diante de uma decisão de época: que postura adotar perante essa nova
situação? Não foi rápido nem sem dilacerações que a Igreja chegou à determinação
que a voltou para o futuro. Estava se repetindo, em certa medida, o que tinha
acontecido no momento da separação do judaísmo para acolher os gentios na
Igreja. A dissipação geral dos cristãos chegou ao clímax no saque de Roma, em
410, comandado pelo rei dos godos, Alarico. Pensava-se que tinha chegado a hora
do fim do mundo, quando o mundo era identificado com o mundo romano, e o mundo
romano com o cristianismo. São Jerônimo é a voz mais representativa dessa
dissipação geral: “Quem teria acreditado que esta Roma, construída sobre
vitórias que retumbaram pelo universo inteiro, haveria um dia de desabar?” (S.
Jerônimo, Comentário a Ezequiel, III, 25, pref.).
Quem
mais contribuiu, do ponto de vista intelectual, para rebocar a fé para o novo
mundo foi Agostinho, com De civitate Dei. Na visão dele, que emoldura o começo
de uma filosofia da história, é diferenciada a cidade de Deus da cidade
terrena, identificada em alguns trechos, forçando um pouco o seu próprio
pensamento, com a cidade do demônio. Por cidade terrena ele entende toda
realização política, inclusive a de Roma. Portanto, não é nenhum fim do mundo,
mas apenas o fim de um mundo.
Um papel
determinante na abertura da fé para a nova realidade e na coordenação das
iniciativas voltadas a ela foi desempenhado pelo pontífice romano, São Leão
Magno. Ele tem uma consciência clara de que a Roma cristã sobreviverá à Roma
pagã. Mais ainda: ela “presidirá o mundo, com a sua religião divina, mais
amplamente do que teria presidido com a sua dominação terrena” (S. Leão
Magno,Sermão 82).
Pouco a
pouco, a postura dos cristãos quanto aos povos bárbaros muda. De seres
inferiores, incapazes de civilidade, eles começam a ser considerados como
possíveis futuros irmãos de fé. De ameaça permanente, o mundo bárbaro começa a
ser visto pelos cristãos como um novo, vasto campo de missão. Paulo tinha
proclamado abolidas, com Cristo, as distinções de raça, de religião, de cultura
e de classe social, com as palavras “Não há mais grego nem judeu, circuncisão
ou incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre, mas apenas Cristo, em tudo e
em todos” (Col 3,11). Mas que dificuldade para traduzir esta revolução na
realidade da história! E não só naquele tempo.
2. A
reevangelização da Europa
No
tocante aos povos bárbaros, a Igreja viu-se em meio a duas batalhas. A primeira
foi contra a heresia ariana. Muitas tribos bárbaras, em especial os godos,
antes de penetrarem no coração do império como conquistadores tinham tido contatos
no Oriente com o cristianismo, e o haviam acolhido na versão ariana, então no
auge, por causa da obra do bispo Ulfila (311-383), que traduzira a bíblia para
o gótico e vivera em meio àqueles povos. Quando se estabeleceram nos territórios
ocidentais, eles trouxeram consigo essa versão herética do cristianismo.
O
arianismo não tinha, no entanto, uma organização unitária, nem uma cultura e
uma teologia comparável com a católica. No século VI, um depois do outro, os
reinos bárbaros abandonaram o arianismo para aderir à fé católica, graças ao
trabalho de grandes bispos e escritores católicos, e, algumas vezes, de
cálculos políticos. Um momento decisivo foi o concílio de Toledo, em 589, com
Leandro de Sevilha, que marcou o fim do arianismo visigótico na Espanha e, na
prática, no ocidente inteiro.
Mas a
batalha contra o arianismo não era coisa nova. Tinha começado no distante ano
de 325. A verdadeira nova empreitada realizada pela Igreja depois do ocaso do
império romano foi a evangelização dos pagãos. Ela aconteceu em dois sentidos:
ad intra e ad extra, por dizer assim, ou seja, tanto junto aos povos do antigo
império quanto junto aos povos que tinham recém-entrado em cena. Nos
territórios do império velho, Itália e províncias, a Igreja estava implantada
até aquele momento quase só nas cidades. Ela precisava estender a sua presença
para o interior, para os vilarejos. O termo “pagão” deriva, como se sabe, de
“pagus”, vilarejo, e assumiu o significado que tem hoje do fato de que a
evangelização do interior ocorreu em geral bem depois da evangelização urbana.
Seria
interessante, certamente, seguirmos este filão da evangelização que levou ao
nascimento e ao desenvolvimento do sistema das paróquias, como subdivisões da
diocese, mas, dentro da meta que eu me dei para agora, preciso me limitar à
outra direção que também foi seguida pela evangelização: a direção ad extra,
destinada a levar o Evangelho para os povos bárbaros que tinham se firmado na
Europa insular e central, isto é, nas atuais Inglaterra, Holanda, França e
Alemanha.
Um
momento decisivo nesta empreitada foi a conversão do rei merovíngio Clodoveu,
que, na noite de Natal de 498, ou 499, se deixou batizar pelo bispo de Reims,
São Remígio. Ele decidiu, com isso, de acordo com os costumes daquele tempo,
não apenas o futuro religioso do povo franco, mas também o dos outros povos de
cá e de lá do Reno, conquistados por ele. É célebre a frase do bispo Remígio no
momento de batizar Clodoveu: “Mitis depone colla, Sigamber; adora quod
incendisti, incende quod adorasti”. “Inclina humildemente a nuca, Sigambro
altivo; adora o que tu queimavas, queima o que tu adoravas” (Gregório de Tours,
Historia Francorum, II, 31). A este acontecimento é que a França deve o título
de “filha primogênita da Igreja”.
A
cristianização do continente foi levada em frente no século IX com a obra dos
santos Cirilo e Metódio, que converteram os povos eslavos assentados na Europa
oriental, nos territórios deixados para trás durante as ondas migratórias
anteriores, que se deslocavam para o ocidente.
A
evangelização dos bárbaros apresentava uma nova situação se comparada à do
mundo greco-romano. Antes, o cristianismo tinha por diante um mundo culto,
organizado, com regras, leis, línguas comuns; havia, enfim, uma cultura com a
qual dialogar e com a qual confrontar-se. Agora, ele tem que cumprir ao mesmo
tempo uma obra de civilização e de evangelização; tem que ensinar a ler e
escrever, enquanto ensina a doutrina cristã. A inculturação se apresenta de um
jeito inteiramente novo.
3. A
epopeia monástica
A obra
gigantesca que eu pincelei aqui foi realizada com a participação de todos os
componentes da Igreja. Em primeiro lugar, o papa, a cuja iniciativa direta
remonta a evangelização dos anglos, e que teve uma participação ativa na
evangelização da Alemanha por obra de São Bonifácio e dos povos eslavos pelo
trabalho de São Cirilo e São Metódio. Depois, os bispos, os párocos, que aos
poucos foram formando comunidades locais estáveis. Um papel silencioso, mas
decisivo, foi desempenhado por algumas mulheres. Por trás de algumas grandes
conversões de reis bárbaros esteve o ascendente exercido pelas respectivas
esposas: Santa Clotilde para Clodoveu, Santa Teodolinda para o rei longobardo
Autari, a esposa católica do rei Edvino, que levou o cristianismo para o norte
da Inglaterra.
Mas os
verdadeiros protagonistas da reevangelização da Europa depois das invasões
bárbaras foram os monges. No Ocidente, o monacato começado no século IV se
difundiu rapidamente em duas épocas e em dois sentidos diferentes. A primeira
onda partiu da Gália meridional e central, especialmente das ilhas Lérins (410)
e da região de Auxerre (418), e, graças a São Patrício, formado naqueles dois
centros, chegou até a Irlanda, onde fecundou a vida religiosa inteira da ilha.
De lá, passou para a Escócia e para a Inglaterra num primeiro momento e,
depois, voltou rumo ao continente.
A
segunda onda, destinada a unificar as diversas formas de vida monástica
ocidental, surge na Itália de São Bento (+547). Do século V ao VIII, a Europa
se recobre literalmente de mosteiros, muitos deles de importância essencial na
formação do continente, não apenas na fé, mas também na arte, na cultura e na
agricultura. Não foi à toa que São Bento foi proclamado Padroeiro da Europa, e
que o papa escolheu Subiaco, em 2005, para o seu discurso magistral sobre as
raízes cristãs da Europa.
As
grandes figuras dos monges evangelizadores pertencem quase todas à primeira das
duas correntes que recordamos aqui, aquela que retorna ao continente via
Irlanda e Inglaterra. Os nomes mais representativos são os de São Columbano e
São Bonifácio. O primeiro, partindo de Luxeuil, evangelizou numerosas regiões
do norte da Gália e as tribos germânicas meridionais, chegando até Bobbio, na
Itália. O segundo, considerado o evangelizador da Alemanha, estendeu a partir
de Fulda uma ação missionária que atingiu a Frísia, atual Holanda. O Santo
Padre Bento XVI dedicou a ele uma das suas catequeses de quarta-feira, a de 11
de março de 2009, enfatizando a colaboração estreita com o Romano Pontífice e a
ação civilizadora no seio dos povos que Bonifácio evangelizou.
Ao lermos
suas vidas, temos a impressão de reviver a aventura missionária do apóstolo
Paulo. A mesma ânsia de levar o evangelho a toda criatura, a mesma coragem de
enfrentar toda sorte de perigos e reveses, e, para São Bonifácio e tantos
outros, a mesma sorte final do martírio.
As
lacunas dessa evangelização vasta são conhecidas. O próprio confronto com São
Paulo põe as principais delas em destaque. O apóstolo, junto com a
evangelização, procurava em todo lugar fundar uma igreja que assegurasse a sua
continuidade e desenvolvimento. Era frequente, por carência de meios e pela
dificuldade de locomoção dentro de uma sociedade ainda rudimentar, que aqueles
pioneiros não conseguissem garantir um seguimento da própria obra.
Do
programa indicado por São Remígio a Clodoveu, os povos bárbaros tendiam a pôr
em prática só uma parte. Adoravam o que tinham queimado, mas não queimavam o
que tinham adorado. Grande parte da bagagem idólatra e pagã permanecia presente
e se mostrava na primeira oportunidade. Ocorria o que acontece com algumas
estradas abertas na floresta: sem manutenção e com pouco tráfego, a selva as
invade em pouco tempo. A obra mais duradoura desses grandes evangelizadores foi
justamente a fundação de uma rede de mosteiros, e, com Agostinho na Inglaterra
e São Bonifácio na Alemanha, a criação de dioceses e a celebração de sínodos
que garantiam a continuação de uma evangelização mais estável e profunda.
4.
Missão e contemplação
Agora
vamos procurar encontrar alguma indicação para hoje nesse quadro histórico que
traçamos. Notemos primeiro uma certa analogia entre a época que revisitamos e a
situação atual. O movimento, naquele tempo, ia de Leste para Oeste, e agora é
de Sul para Norte. A Igreja, com o seu magistério, também neste caso fez uma
escolha de campo, que é de abertura para o que é novo e de acolhimento dos
novos povos.
A
diferença é que hoje não estão chegando à Europa povo pagãos ou hereges
cristãos, mas povos que possuem uma religião bem constituída e consciente de si
mesma. O fato novo é o diálogo que não se opõe à evangelização, mas determina o
seu estilo. O beato João Paulo II, na encíclica Redemptoris Missio, sobre a
validade perene do mandado missionário, se expressou com clareza a este
respeito:
“O
diálogo inter-religioso faz parte da missão evangelizadora da Igreja. Entendido
como método e meio para um conhecimento e enriquecimento recíproco, ele não
está em contraposição com a missão ad gentes; antes, tem com ela vínculos
especiais e é dela uma expressão. À luz da economia da salvação, a Igreja não vê
contraste entre o anúncio de Cristo e o diálogo inter-religioso. Ela sente,
porém, a necessidade de compô-los no âmbito da sua missão ad gentes. É
necessário que estes dois elementos mantenham seu vínculo íntimo, e, ao mesmo
tempo, a sua distinção, pela qual não se confundem, não se instrumentalizam e
não são julgados como equivalentes, como se fossem intercambiáveis” (João Paulo
II, Redemptoris Missio, 55).
O que
aconteceu na Europa depois das invasões bárbaras nos mostra, acima de tudo, a
importância da vida contemplativa para a evangelização. O decreto conciliar Ad
gentes, sobre a atividade missionária da Igreja, escreve:
“Merecem
especial consideração as várias iniciativas destinadas a estabelecer a vida
contemplativa. Alguns institutos, mantendo os elementos essenciais da
instituição monástica, tendem a implantar a riquíssima tradição da própria
ordem; outros procuram voltar à simplicidade das formas do monacato primitivo.
Todos, porém, devem buscar uma real adaptação às condições locais. A vida contemplativa
implica a presença eclesial na sua forma mais plena: por isso é preciso que ela
seja constituída em toda parte nas jovens Igrejas” (L.G., 18).
Este
convite a procurar novas formas de vida monástica para fins de evangelização,
mesmo inspirando-se no monacato antigo, não ficou sem ser ouvido.
Uma das
formas de realização desse auspício são as Fraternidades Monásticas de
Jerusalém, conhecidas como “os monges e freiras de cidade”. Seu fundador, padre
Pierre-Marie Delfieux, depois de dois anos no deserto do Saara em companhia
somente da Eucaristia e da bíblia, entendeu que o verdadeiro deserto são hoje
as grandes cidades secularizadas. Iniciadas em Paris na festa de Todos os
Santos de 1975, essas fraternidades já estão presentes em várias grandes
cidades da Europa, inclusive Roma, onde assumiram a igreja de Trinità dei
Monti. O carisma deles é evangelizar através da beleza da arte e da liturgia.
Seu hábito é monástico, seu estilo de vida é simples e austero, há o vínculo
entre trabalho e oração; mas é nova a sua colocação no centro das cidades,
geralmente em igrejas antigas de grande reclame artístico, a colaboração entre
monges e freiras no âmbito litúrgico, sem deixar de haver uma total
independência recíproca em habitação e autoridade. Não foram poucas as
conversões de pessoas distantes, nem as voltas de cristãos “de nome” para a fé
praticada, graças a esses locais.
De outro
gênero, mas também participando nessa nova florada de formas monásticas, é o
mosteiro de Bose, na Itália. No ecumenismo, o mosteiro de Taizé, na França, é
um exemplo de vida contemplativa diretamente comprometida com a evangelização.
Em 1º de
novembro de 1982, em Ávila, acolhendo uma vasta representação da vida
contemplativa feminina, João Paulo II prospectou até mesmo para a vida de clausula
das freiras a possibilidade de um envolvimento mais direto na obra da
evangelização.
“Seus
conventos”, disse ele, “são comunidades de oração em meio às comunidades
cristãs, às quais vocês dão ajuda, alimento e esperança. São lugares
consagrados e poderão ser ainda centros de acolhimento cristão para aquelas
pessoas, particularmente os jovens, que tantas vezes estão em busca de uma vida
simples e transparente, em contraste com a vida que é oferecida a eles pela
sociedade do consumo”.
O apelo
não passou em branco e está se traduzindo em iniciativas originais de vida
contemplativa feminina aberta à evangelização. Uma delas se tornou conhecida no
recente congresso promovido aqui no Vaticano pelo Pontifício Conselho para a
Nova Evangelização. Essas formas novas não substituem as realidades monásticas
tradicionais, muitas das quais também são centros de irradiação espiritual e de
evangelização, mas se juntam a elas e as enriquecem.
Não
basta que na Igreja exista quem se dedica à contemplação e quem à missão.
Precisamos que a síntese entre as duas coisas aconteça na vida de cada
missionário. Não basta, em outras palavras, a oração “pelos” missionários:
precisamos da oração “dos” missionários. Os grandes monges que reevangelizaram
a Europa depois das invasões bárbaras eram homens saídos do silêncio da
contemplação e que voltavam a ela tão logo as circunstâncias permitiam. Mais
ainda: no coração, eles nunca saíam do mosteiro. Colocavam em prática, por
antecipação, o conselho que Francisco de Assis daria aos seus frades quando os
enviasse às estradas do mundo: “Nós temos uma ermida sempre conosco, onde quer
que estejamos, e, toda vez que quisermos, podemos voltar para dentro dela, como
eremitas. O irmão corpo é a ermida e a alma é o eremita que a habita para falar
com Deus e meditar” (Legenda Perugina, 80 – FF, 1636).
Temos
disso um exemplo de muito mais autoridade. A jornada de Jesus era um
entrecruzar-se admirável de oração e pregação. Ele não rezava apenas antes de
pregar, mas rezava para saber o que pregar, para buscar na oração o que
anunciar ao mundo. “O que digo, é como o Pai o disse a mim” (Jo 12,50). Era
dali que surgia em Jesus a “autoridade” que tanto impressionava em seu falar.
O
esforço por uma nova evangelização está exposto a dois perigos. Um deles é a
inércia, a preguiça, o não fazer nada e deixar que os outros façam tudo. E o
outro é se lançar num ativismo humano febril e vazio, com o resultado de perder
pouco a pouco o contato com a fonte da palavra e da sua eficácia. Mas como
ficar tranquilos pregando enquanto tantas exigências reclamam a nossa presença?
Como não correr enquanto a casa está pegando fogo? Imaginemos o que aconteceria
com um corpo de bombeiros que corresse para apagar um incêndio e, quando
chegasse ao local, percebesse que não trouxe nos reservatórios nenhuma gota
d’água. Somos nós, quando corremos para pregar sem rezar.
A oração
é essencial para a evangelização porque “a pregação cristã não é primariamente
comunicação de doutrina, mas de existência”. Faz mais evangelização quem reza sem
falar do que quem fala sem rezar.
5.
Maria, estrela da evangelização
Terminemos
com um pensamento sugerido pelo tempo litúrgico que estamos vivendo e pela
solenidade da Imaculada Conceição. Uma vez, num diálogo ecumênico, um irmão
protestante me perguntou, sem polêmicas, apenas para entender: “Por que vocês,
católicos, dizem que Maria é a estrela da evangelização? O que ela fez para
justificar esse título?”. Para mim, foi a ocasião de refletir, e eu não demorei
a encontrar a razão profunda. Maria é a estrela da evangelização porque ela
trouxe a Palavra não para este ou para aquele povo, mas para o mundo inteiro!
E não só
por isso. Ela carregou a Palavra no ventre, não na boca. Estava cheia,
fisicamente inclusive, de Cristo, e o irradiava com sua simples presença. Jesus
lhe saía dos olhos, do rosto, de toda a pessoa. Quando nos perfumamos, não precisamos
avisar. Basta estar perto. Maria, especialmente no tempo em que trazia Jesus no
ventre, estava cheia do perfume de Cristo.
Podemos
dizer que Maria foi a primeira consagrada de clausura da Igreja. Depois do
Pentecostes, ela como que entrou em clausura. Através das cartas dos apóstolos,
conhecemos inúmeras personagens, entre elas tantas mulheres, da primitiva
comunidade cristã. E achamos menção a uma certa Maria (cf. Rom 16,6), mas não é
ela. De Maria, a Mãe de Jesus, nada. Ela desaparece no mais profundo silêncio.
Mas o que significou para João tê-la ao lado enquanto escrevia o Evangelho e o
que pode significar para nós tê-la ao lado enquanto proclamamos o mesmo
Evangelho! “Primícias dos Evangelhos”, escreve Orígenes, “é o de João, cujo
sentido profundo não se pode perceber sem se ter apoiado a cabeça no peito de
Jesus nem se ter recebido dele Maria como própria mãe” (Orígenes, Comentário a
João, I, 6,23).
Maria
inaugurou na Igreja uma segunda alma, ou vocação, que é a alma escondida e
orante, junto com a alma apostólica ou ativa. É o que exprime com louvor o
ícone tradicional da Ascensão, da qual temos no lado direito desta capela uma
representação. Maria está em pé, com os braços abertos em espera orante. Em
torno dela, os apóstolos, todos com um pé ou mão elevada, em movimento,
representando a Igreja ativa, que está em missão, que fala e age. Maria está
imóvel abaixo de Jesus, no ponto exato de onde ele ascendeu, quase como
mantendo viva a memória dele e a espera pelo seu retorno.
Encerremos
ouvindo as palavras finais da Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, que pela
primeira vez nos documentos pontifícios chama Maria de estrela da
evangelização:
“Na
manhã de Pentecostes, Ela presidiu com a oração o início da evangelização sob a
ação do Espírito Santo. Seja ela a estrela da evangelização sempre renovada que
a Igreja, dócil ao mandado do Senhor, deve promover e cumprir, particularmente
nestes tempos difíceis, mas cheios de esperança!”.
16 de dezembro de 2011
Terceiro sermão do Advento de 2011
A primeira evangelização das
Américas
1. A fé
cristã cruza o oceano
No dia
12 deste mês, o continente americano celebrou a festa de Nossa Senhora de
Guadalupe, que, no México, é uma festa de preceito. Feliz coincidência, nesta
meditação, falarmos da terceira onda evangelizadora na história da Igreja:
aquela que acompanhou a descoberta do novo mundo. Nunca como na história desta
devoção Maria mereceu tanto o título de estrela da evangelização.
Vamos
relembrar, com pinceladas, o desenrolar-se daquela empreitada missionária.
Antes de tudo, uma observação. A Europa cristã, junto com a fé, exportou para o
novo continente também as suas divisões. No fim dessa grande onda missionária,
o continente americano vai reproduzir exatamente a situação da Europa: um Sul
de maioria católica e um Norte de maioria protestante. Nós vamos abordar aqui
somente a evangelização da América Latina, até porque foi a primeira que
aconteceu logo após a descoberta do novo mundo.
Depois
que Cristóvão Colombo, em 1492, voltou da viagem com a notícia da existência de
novas terras, que ainda eram tidas como parte da Índia, a Espanha católica
tomou, inseparavelmente misturadas, duas decisões: a de levar a fé cristã para
os novos povos e a de estender sobre eles a soberania política espanhola. Com
esta meta, conseguiram do papa Alexandre VI o reconhecimento do direito da
Espanha a todas as terras descobertas cem milhas além dos Açores, e para
Portugal as que ficassem antes dessa linha. Depois, a linha foi mexida em favor
de Portugal, o que legitimou a sua posse do Brasil. Delineava-se, assim,
inclusive linguisticamente, o rosto futuro do continente latino-americano.
Quando
penetravam num país, as tropas divulgavam toda vez um requerimento que mandava
os habitantes abraçarem o cristianismo e reconhecerem a soberania do rei da
Espanha. Só alguns grandes espíritos, em primeiro lugar os dominicanos Antonio
de Montesinos e Bartolomeo de Las Casas, tiveram a coragem de levantar a voz
contra os abusos dos conquistadores e em defesa dos direitos dos nativos. Em
pouco mais de cinqüenta anos, graças também à fragilidade e às divisões dos
reinos locais, o continente já estava sob o domínio espanhol e, pelo menos
nominalmente, sob domínio cristão.
Os
historiadores recentes tendem a atenuar as sombras que o passado lançou nessa
obra missionária. Primeiramente, ressalta-se que a maioria dos povos nativos
sobreviveu com a própria língua e nos próprios territórios, tanto que puderam retomar
e reafirmar depois a sua identidade e independência, ao contrário do que foi
feito com as tribos indígenas da América do Norte, dizimadas. Devemos
considerar também o condicionamento dos missionários à sua formação teológica.
Tomando ao pé da letra o adágio “Extra Ecclesia nulla salus”, eles tinham
convicção da necessidade de batizar o máximo de pessoas no tempo mais curto,
para garantir a sua salvação eterna.
Vale a
pena analisarmos um pouco melhor este axioma que teve tanto peso na
evangelização. Foram Orígenes e principalmente São Cipriano que o formularam no
século III. No começo, ele não se referia à salvação dos não cristãos, mas só à
dos próprios cristãos, porque se dirigia aos hereges e aos cismáticos da época,
para lembrar a eles que, rompendo a comunhão eclesial, viravam réus de uma
grave culpa e se excluíam sozinhos da salvação. Era um axioma voltado aos que
saíam da Igreja, e não àqueles que entravam nela.
Mais
tarde, quando o cristianismo já era religião de estado, é que o axioma começou a
ser aplicado a pagãos e judeus, com base na convicção, então comum, embora
objetivamente errada, de que a mensagem àquela altura já era conhecida por
todos, e refutá-la significava tornar-se culpados e merecedores de condenação.
Foi logo
depois do descobrimento do novo mundo que aqueles limites geográficos se
romperam drasticamente. A descoberta de povos inteiros vivendo fora de todo
contato com a Igreja obrigou à revisão de uma interpretação tão rígida do
axioma. Os teólogos dominicanos de Salamanca, e, depois, alguns jesuítas,
começaram a adotar uma postura crítica, reconhecendo que era possível estar
fora da Igreja sem ser necessariamente culpado e excluído da salvação. E mais:
diante dos modos e métodos inaceitáveis com que o Evangelho tinha sido anunciado
aos nativos em alguns casos, foi questionado pela primeira vez se eram mesmo
culpados aqueles que, mesmo tendo conhecido o anúncio cristão, não o tinham
abraçado (F. Sullivan, Salvation outside the Church?Tracing the History of the
Catholic Response,Paulist Press, Nova Iorque, 1992).
2.
Protagonistas: os frades
Este não
é o contexto para dar um parecer histórico sobre a primeira evangelização da
América Latina, é claro. No seu quinto centenário, em maio de 1992, aconteceu
um simpósio internacional de historiadores, em Roma, sobre o assunto. No
discurso aos participantes, João Paulo II afirmou: “Sem dúvida, nessa
evangelização, como em toda obra do homem, houve acertos e erros, luzes e
sombras. Mais luzes do que sombras, a julgar pelos frutos que encontramos
depois de quinhentos anos: uma igreja viva e dinâmica que representa hoje uma
parte relevante da Igreja universal” (14 de maio de 1992).
Por
outro lado, naquela ocasião, alguns falaram da necessidade de uma
“descolonização” e “desevangelização”, dando a impressão de preferirem que a
evangelização do continente não tivesse jamais acontecido em vez de ter sido do
jeito que conhecemos. Com todo o respeito devido ao amor pelos povos
latino-americanos que movia esses autores, eu acredito que aquela opinião deve
ser energicamente refutada.
A um
mundo sem pecado, mas sem Cristo, a teologia mostrou preferir um mundo com
pecado, mas com Cristo. “Oh, culpa feliz”, exclama a liturgia pascal no
Exultet, “que nos permitiu tão grande redentor!”. Não deveríamos dizer o mesmo
da evangelização de ambas Américas, do Sul e do Norte? A um continente sem “os
erros e sombras” que acompanharam a sua evangelização, mas também sem Cristo,
quem não preferiria um continente com tais sombras, mas com Cristo? Que
cristão, de esquerda ou direita, especialmente se for sacerdote ou religioso,
poderia dizer o contrário sem desprezar, por isso mesmo, a própria fé?
Eu li em
algum lugar esta afirmação que compartilho por inteiro: “A coisa mais
importante que aconteceu em 1492 não foi que Cristóvão Colombo descobriu a
América, mas que a América descobriu Jesus Cristo”. É verdade que não era o
Cristo integral do Evangelho, para quem a liberdade é o pressuposto da fé, mas
quem pode pretender apresentar um Cristo livre de qualquer condicionamento
histórico? Quem propõe um Cristo revolucionário, contestador das estruturas,
diretamente engajado também na luta política, não esquece talvez alguma coisa
de Cristo, como aquela afirmação de que “o meu reino não é deste mundo”?
Se na
primeira onda evangelizadora os protagonistas foram os bispos, e na segunda os
monges, nesta terceira os protagonistas indiscutíveis foram os frades, ou seja,
os religiosos das ordens mendicantes, em primeiro lugar os franciscanos, dominicanos,
agostinianos, e, num segundo momento, os jesuítas. Os historiadores da Igreja
reconhecem que, na América Latina, “foram os membros das ordens religiosas que
determinaram a história das missões e das igrejas” (Cfr. Glazik, op. cit., p.
708).
Quanto a
isso, vale o parecer de João Paulo II de que “há mais luzes do que sombras”.
Não seria honesto desconhecer o sacrifício pessoal e o heroísmo de tantos
desses missionários. Os conquistadores eram movidos pelo espírito de aventura e
pela sede do lucro, mas os missionários podiam esperar o quê quando deixavam
pátria e convento? Eles não iam pegar, mas doar. Eles queriam conquistar almas
para Cristo, não súditos para o rei da Espanha, mesmo compartilhando o entusiasmo
nacionalista dos seus compatriotas. Quando lemos histórias ligadas à evangelização
de um território particular, vemos o quanto os juízos genéricos são injustos e
distantes da realidade. Eu acabei lendo in loco a crônica do início da missão
na Guatemala e nas regiões vizinhas. São histórias de sacrifícios e peripécias
inenarráveis. De um punhado de vinte dominicanos que partiram para o novo mundo
e para as Filipinas, dezoito morreram na viagem.
Em 1974
aconteceu o sínodo sobre “a evangelização no mundo contemporâneo”. Em nota
manuscrita feita no documento final, que a prefeitura da Casa Pontifícia teve a
ideia de publicar no programa destas pregações, Paulo VI apontava:
“Bastará,
para os religiosos, o que é dito [no documento]? Não seria de se agregar uma
palavra sobre o caráter voluntário, empreendedor, generoso da evangelização dos
Religiosos e das Religiosas? A sua evangelização deve depender daquela da
Hierarquia e coordenar-se com ela, mas é de louvar-se a originalidade, a
genialidade, a dedicação, tantas vezes de vanguarda e com um risco todo deles”.
Este
reconhecimento se aplica em cheio aos religiosos protagonistas da evangelização
da América Latina, em especial se pensarmos em certas realizações deles como as
famosas reduções dos jesuítas no Paraguai, aquelas vilas em que os índios
cristãos, a salvo dos abusos da autoridade civil, podiam instruir-se na fé, mas
também fazer os seus talentos humanos darem frutos.
3. Os
problemas atuais
Agora,
como de costume, vamos passar para o hoje e ver o que nos diz a história da
experiência missionária da Igreja, que reconstruímos brevemente. As condições
sociais e religiosas do continente mudaram tão profundamente que, mais do que
insistir no que podemos aprender ou desaprender daquele tempo, é útil refletir
na tarefa atual da evangelização no continente latino-americano.
Houve, e
ainda há, uma tal quantidade de reflexões e de documentos do magistério
pontifício, do CELAM e das igrejas locais a este respeito, que seria presunçoso
de minha parte pensar em acrescentar alguma novidade. Mas eu posso partilhar
uma reflexão sugerida pela minha experiência em campo, já que preguei retiros a
conferências episcopais, ao clero e ao povo de quase todos os países da América
Latina, e várias vezes em alguns deles. Além disso, os problemas da América
Latina neste campo não são afinal tão diferentes dos problemas do resto da
Igreja.
Uma
reflexão enfocaria a necessidade de superar uma polarização excessiva que está
espalhada pela Igreja, mas que é particularmente aguda na América Latina, em
especial nos anos passados: a polarização entre alma ativa e alma contemplativa,
entre a Igreja do compromisso social com os pobres e a Igreja do anúncio da fé.
Diante de qualquer diferenciação, nós somos sempre tentados, instintivamente, a
escolher um lado e desprezar o outro. A doutrina dos carismas nos poupa dessa
luta. O dom da Igreja católica é ser, justamente, católica, ou seja, aberta a
acolher os dons mais diversos que provêm do mesmo Espírito.
A
história das ordens religiosas mostra isso. Elas encarnaram instâncias diversas
e às vezes opostas: a inserção no mundo e a fuga do mundo, o apostolado entre
os doutos, como os jesuítas, e o apostolado no meio do povo, como os capuchinhos.
Há espaço para uns e para outros. E precisamos de uns e de outros, já que
nenhum pode realizar o Evangelho integral e representar Cristo em todos os
aspectos da sua vida. Cada um deveria, portanto, se alegrar de que outros façam
o que ele não pode: quem cultiva a vida espiritual e o anúncio da Palavra deve
se alegrar porque existe quem se dedique à justiça e à promoção social, e
vice-versa. É sempre válida a admoestação do Apóstolo: “Cessemos
definitivamente de julgar uns aos outros!” (cf. Rm 14,13).
Uma
segunda observação diz respeito ao problema do êxodo de católicos para outras
denominações cristãs. Antes de mais, lembremos que essas denominações diversas
não podem ser qualificadas indistintamente como “seitas”. Com algumas,
incluindo os pentecostais, a Igreja mantém há anos um diálogo ecumênico
oficial, o que ela não faria se as considerasse meramente como seitas.
A
promoção desse diálogo, inclusive localmente, é o melhor meio para desanuviar o
clima, isolar as seitas mais agressivas e desencorajar a prática do
proselitismo. Alguns anos atrás, houve um encontro ecumênico de oração e
pregação em Buenos Aires com participação do arcebispo católico e de líderes de
outras igrejas, com sete mil pessoas. Ficou clara a possibilidade de uma
relação nova entre os cristãos, bem mais construtiva para a fé e para a
evangelização.
João
Paulo II afirmou, num documento, que a difusão das seitas obriga a questionar o
porquê, o que falta à nossa pastoral. A convicção que eu tenho, como fruto da
experiência, e não só nos países latino-americanos, é a seguinte. O que puxa
para fora da Igreja não são certas formas de piedade popular alternativa, que a
maioria das outras igrejas e seitas, aliás, rejeitam e combatem. É um anúncio,
parcial, mas incisivo, da graça de Deus, da possibilidade de experimentar Jesus
como Senhor e Salvador pessoal, de pertencer a um grupo que se encarrega
pessoalmente das necessidades da pessoa, que rezam por ela na doença quando a
medicina não tem mais nada a dizer.
Se por
um lado podemos nos alegrar porque essas pessoas acharam Cristo e se
converteram, por outro é triste que elas tenham precisado deixar a Igreja para
isso. Na maioria das igrejas que esses irmãos abraçam, tudo gira em torno da
primeira conversão e da aceitação de Jesus como Senhor. Na Igreja católica,
graças aos sacramentos, ao magistério, à riquíssima espiritualidade, existe a
vantagem de não se ficar nesse estágio inicial, mas de se chegar à plenitude e
à perfeição da vida cristã. Os santos são a prova. Mas é preciso que aquele
início consciente e pessoal seja oferecido, e é nisto que o desafio das
comunidades evangélicas e pentecostais nos estimula.
E a
Renovação Carismática se revela, assim, mais do que nunca, segundo a palavra de
Paulo VI, “uma chance para a Igreja”. Na América Latina, os pastores da Igreja
estão notando que a Renovação Carismática não faz “parte do problema” do êxodo
de católicos, como alguns acharam no começo, e sim que ela faz parte da
solução. As estatísticas nunca mostram quantas pessoas ficaram na Igreja graças
a ela, encontrando no seu âmbito o que outros procuraram fora. As numerosas
comunidades nascidas no seio da Renovação Carismática, mesmo com restrições, e
às vezes com desvios, presentes em toda iniciativa humana, estão na vanguarda
do serviço da Igreja e da evangelização.
4. O
papel dos religiosos na nova evangelização
Eu disse
que não queria insistir na primeira evangelização. Mas temos que ficar com uma
coisa dela: a importância das ordens religiosas tradicionais para evangelizar.
O beato João Paulo II dedicou a elas a sua Carta Apostólica do V Centenário da
Primeira Evangelização do continente, chamada, no original, “Los caminos del
Evangelio”. A última parte trata precisamente dos “religiosos na nova
evangelização”: “Os religiosos, que foram os primeiros evangelizadores, e
contribuíram de modo tão relevante para manter viva a fé no continente, não
podem faltar na convocação eclesial à nova evangelização. Os diversos carismas
da vida consagrada tornam viva a mensagem de Jesus, presente e atual em todo
tempo e lugar” (“Los caminos del Evangelio”, 24).
A vida
de comunidade, o fato de terem um governo centralizado e lugares de formação de
nível superior, foi o que permitiu que as ordens religiosas de então tivessem
uma tarefa missionária tão vasta. Mas, hoje, como está essa força? Falando de
dentro de uma dessas ordens antigas, eu posso me atrever a falar com certa
liberdade. A rápida queda de vocações nos países ocidentais está determinando
uma situação perigosa: a de se gastarem quase todas as próprias forças na
satisfação das exigências internas da família religiosa em si: formação dos
jovens, manutenção das estruturas e das obras, sem muitas forças vivas
dedicadas ao círculo mais amplo da Igreja. Daí esse voltar-se para si mesmos.
Na Europa, as ordens religiosas tradicionais se obrigam a reunir várias
províncias em uma e a fechar dolorosamente uma casa atrás da outra.
A
secularização, é claro, é uma das causas dessa queda nas vocações, mas não é a
única. Comunidades religiosas recentes atraem filas de jovens. Na carta citada,
João Paulo II exorta os religiosos e religiosas da América Latina a “evangelizarem
a partir de uma experiência profunda de Deus”. Aqui está, acredito eu, o ponto:
“uma experiência profunda de Deus”. É isto o que atrai as vocações e cria as
premissas para uma nova onda eficaz de evangelização. O adágio “Nemo dat quod
non habet”, “ninguém dá o que não tem”, vale como nunca nesta área.
O
superior provincial dos Capuchinhos da região italiana das Marcas, e que é meu
superior, escreveu para este Advento uma carta a todos os frades. Ele lança uma
provocação que eu acho que faria bem que todas as comunidades religiosas
tradicionais escutassem:
“Você,
que lê estas linhas: imagine que você é o Espírito Santo. Sim, você leu certo:
não apenas que está repleto do Espírito Santo, pelos sacramentos recebidos, mas
que você é, mesmo, o Espírito Santo, a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.
E, como tal, imagine que você tem o poder de chamar e conduzir um jovem numa
estrada rumo à perfeição da caridade, que é a vida religiosa. Você teria a
coragem de chamá-lo para a sua comunidade, com a certeza e a garantia de que a
sua comunidade é o lugar que o ajudará seriamente a conseguir a perfeição da
caridade no concreto da vida cotidiana? Em palavras pobres: se um jovem fosse
viver alguns dias ou meses na sua comunidade, compartilhando a oração, a vida
fraterna, o apostolado… ele se apaixonaria pela nossa vida?”.
Quando
nasceram as ordens mendicantes, dominicanos e franciscanos, no começo do século
XIII, as ordens monásticas pré-existentes também se beneficiaram deles e
responderam ao chamado de uma pobreza maior e de uma vida mais evangélica,
segundo o próprio carisma. Não deveríamos fazer o mesmo, hoje, nós, das ordens
tradicionais, diante das novas formas de vida consagrada suscitadas na Igreja?
A graça
dessas novas realidades é multiforme, mas tem um denominador comum chamado
Espírito Santo, o “novo Pentecostes”. Depois do concílio, quase todas as ordens
religiosas pré-existentes revisaram e renovaram as suas constituições, mas, já
em 1981, o beato João Paulo II alertava: “Toda a obra de renovação da Igreja,
que o concílio Vaticano II propôs e iniciou tão providencialmente, só pode se
realizar no Espírito Santo, ou seja, com a ajuda de sua luz e da sua força”
(carta apostólica A Concilio Constantinopolitano I,25 de março de 1981).
“O
Espírito Santo”, dizia São Boaventura, “vai onde é amado, convidado, esperado”
(Sermão para o IV Domingo depois da Páscoa, 2, Ed. Quaracchi, IX, pág. 311).
Temos que abrir as comunidades ao sopro do Espírito que renova a oração, a vida
fraterna, o amor por Cristo e, com ele, o zelo missionário. Olhar para dentro,
para as próprias origens e para o próprio fundador, mas também olhar para
frente.
Olhando
para a situação das ordens antigas no mundo ocidental, surge espontânea a
pergunta que Ezequiel ouviu sobre os ossos secos: “Poderão estes ossos
reviver?”. Os ossos secos de que se fala no texto não são os dos mortos, mas
dos vivos. São o povo de Israel em exílio, que diz: “Os nossos ossos estão
secos, a nossa esperança se desvaneceu, estamos perdidos”. São sentimentos que
afloram, às vezes, em nós também, que pertencemos a ordens religiosas de antiga
data.
Sabemos
a resposta, cheia de esperança, que Deus dá para essa pergunta. “Porei em vós o
meu Espírito e retornareis à vida. Colocar-vos-ei sobre a vossa terra e
sabereis que eu, o Senhor, falei e fiz acontecer”. Temos que acreditar e
esperar também para nós e para a Igreja toda o que diz o final da profecia: “O
Espírito entrou neles: tornaram à vida e se levantaram. Eram um grande
exército; grandíssimo” (cf. Ez 37, 1-14).
Neste
dia 12, eu dizia no começo, a América Latina celebrou a festa de Nossa Senhora
de Guadalupe. Discute-se muito a historicidade dos fatos que originaram essa
devoção. Mas o que se entende por fato histórico? Há muitos fatos que aconteceram
de verdade, mas não são históricos, porque “histórico”, no sentido mais
verdadeiro, não é tudo o que aconteceu, mas só o que, além de ter acontecido,
incidiu na vida de um povo, criou algo novo, deixou marca na história. E que
marca a devoção à Virgem de Guadalupe deixou na história religiosa do povo
mexicano e latino-americano!
É de
grande significância simbólica que, no começo da evangelização do continente
americano, em 1531, na colina doTepeyac ao norte da Cidade do México, a imagem
da Virgem tenha sido estampada no manto, na tilma, de São Juan Diego como “la
Morenita”, ou seja, com os traços de uma humilde moça mestiça. Não se poderia
dizer mais sugestivamente que a Igreja, na América Latina, é chamada a ser, e
quer ser, indígena com os indígenas, crioula com os crioulos, toda para todos.
23 de dezembro de 2011
Quarta e última pregação do Advento de 2011
A atual onda de evangelização
1. Um
novo destinatário do anúncio
“Prope
est iam Dominus: venite, adoremus”: O Senhor está próximo: venham, adoremos.
Começamos essa meditação, como inicia a liturgia das horas nestes dias antes do
Natal, para que também essa faça parte de nossa preparação para a solenidade..
Terminemos
hoje as nossas reflexões sobre a evangelização.Tentei reconstruir, nas
meditações anteriores, três grandes ondas de evangelização na história da Igreja.
Certamente poderíamos ter lembrado de outros grandes empreendimentos
missionários, como o que começou São Francisco Xavier no século XVI no Oriente
– Índia, China e Japão – como também a evangelização do continente Africano no
século XIX pelas mãos de Daniel Comboni, do cardeal Guglielmo Massaia e de
tantos outros. No entanto, há uma razão pela escolha feita, que eu espero que
tenha podido transparecer das reflexões realizadas.
Aquilo
que muda e que distingue as várias ondas evangelizadoras lembradas, não é o
objeto do anúncio – “a fé, transmitida aos santos uma vez por todas”, como é
chamada pela Carta de Judas -, mas os destinatários da mesma, respectivamente o
mundo greco-romano, o mundo bárbaro e o novo mundo, ou seja, o continente
americano.
Então
nos perguntamos: quem é o novo destinatário, que nos permite falar da atual
evangelização de hoje, da quarta onda de nova evangelização? A resposta é: o
mundo ocidental secularizado e, em alguns aspectos, pós-cristão. Esta especificação
que já aparecia nos documentos do Beato João Paulo II, tornou-se explícita no
ensinamento do Santo Padre Bento XVI. No Motu Proprio com o qual ele criou o
“Pontifício Conselho para a Promoção da nova evangelização”, ele fala de
“muitos países de antiga tradição cristã, que se tornaram refratários à
mensagem do Evangelho (Bento XVI, Motu Proprio “Ubicunque et semper”).
No
Advento do ano passado tentei caracterizar este novo destinatário do anúncio,
resumindo-o em três pontos: cientificismo, secularismo e racionalismo. Três tendências
que levam a um resultado comum, o relativismo.
E
juntamente com a aparição no cenário de um novo mundo para evangelizar, vimos
cada vez o surgimento de uma nova categoria de anunciadores: os bispos, nos
primeiros três séculos (sobretudo no III), os monges na segunda onda e os
frades na terceira. Também hoje testemunhamos o surgimento de uma nova
categoria de protagonistas da evangelização: os leigos. Não se trata
evidentemente da substituição de uma categoria pela outra, mas de uma nova
parcela do Povo de Deus que se acrescenta às outras, permanecendo sempre os
bispos, encabeçados pelo Papa, os guias oficiais e os responsáveis últimos pela
tarefa missionária da Igreja.
2. Como
o rastro deixado por um grande navio
Eu disse
que ao longo dos séculos mudaram os destinatários do anúncio, mas não o anúncio
em si. Porém, devo esclarecer esta última afirmação. É verdade que não pode
mudar a essência do anúncio, mas pode e deve mudar a maneira de apresentá-lo,
as prioridades, a partir de que ponto começar o anúncio.
Resumimos
os progressos realizados pelo anúncio do Evangelho para chegar até nós. Há,
antes de tudo, o anúncio feito por Jesus que tem por objeto central a notícia:
“Já chegou a vós o Reino de Deus”. Depois desta fase única e irrepetível, que
chamamos de “o tempo de Jesus”, acontece, depois da Páscoa, “o tempo da
Igreja”. Nesse, Jesus não é mais o anunciador, mas o anunciado; a palavra
“Evangelho” não significa mais “a boa nova de Jesus”, mas a boa nova sobre
Jesus, ou seja, que tem por objeto a Jesus e, em particular , sua morte e
ressurreição. Isto é o que São Paulo entende sempre com a palavra “Evangelho”.
É
necessário, porém, estar atentos para não separar muito os dois tempos e os
dois anúncios, aquele de Jesus e aquele da Igreja, ou, como se costuma dizer
faz tempo, o “Jesus histórico” do “Cristo da fé”. Jesus não é somente o objeto
do anúncio da Igreja, a coisa anunciada. Ai do reduzir apenas a isso! Seria
esquecer a ressurreição. No anúncio da Igreja é o Cristo ressucitado que, com o
seu Espírito, ainda fala; ele é também o sujeito que anuncia. Como diz um texto
do Concílio: “Cristo está presente na sua palavra, pois é Ele quem fala quando
lemos as Escrituras na Igreja.” (Sacrosanctum concilium, n. 7).
Partindo
do anúncio inicial da Igreja, o kerygma, podemos resumir com uma imagem o
desenvolver-se sucessivo da pregação da Igreja. Pensemos no rastro deixado por
um navio. Começa com uma ponta, que é a ponta do navio, mas vai se espalhando
sempre mais, até perder-se no horizonte e tocar as duas margens opostas do mar.
É o que aconteceu com o anúncio da Igreja; começou com uma ponta: o kerygma
“Cristo morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação” (cf.
Rm 4, 25, 1 Cor 15,1-3 ); de modo ainda mais significativo e sintético: “Jesus
é o Senhor” (Atos 2, 36; Rm 10,9).
Uma
primeira expansão deste ponto ocorreu com o nascimento dos quatro evangelhos,
escritos para explicar aquele núcleo inicial, e com o resto do Novo Testamento;
depois disso veio a tradição da Igreja, com seu ensinamento, a sua teologia, as
suas instituições, as suas leis, a sua espiritualidade. O resultado final é uma
imensa riqueza que nos faz imaginar precisamente o rastro do navio na sua
expansão máxima.
Por
tanto, neste ponto, caso queiramos reevangelizar o mundo secularizado, faz-se
necessário uma escolha. Por onde começar? A partir de qualquer ponto do rastro
deixado, ou pela ponta? A imensa riqueza de doutrina e de instituições podem se
tornar uma desvantagem se queremos apresentar-nos assim ao homem que perdeu todo
o contato com a Igreja e já não sabe quem é Jesus. Seria como colocar uma daquelas
enormes e pesadas capas pluviais de brocado em cima de uma criança.
É
necessário ajudar este homem a estabelecer uma relação com Jesus; fazer com ele
o que Pedro fez no dia de Pentecostes com as três mil pessoas presentes:
falar-lhes do Jesus que nós crucificamos e que Deus ressuscitou, levá-lo ao
ponto no qual também ele, tocado no coração, peça: “O que devemos fazer,
irmãos?” e nós responderemos, como disse Pedro: “Arrependei-vos, recebam o
batismo, se ainda não o receberam, ou confessem-se se já são batizados”.
Aqueles
que responderão ao anúncio se unirão, também hoje, como então, à comunidade dos
crentes, escutarão o ensinamento dos apóstolos e tomarão parte na fração do
pão; segundo o chamado e a resposta de cada um, poderão fazer próprio, aos
poucos, todo este imenso patrimônio nascido do Kerygma. Nâo se aceita Jesus por
causa da palavra da Igreja, mas se aceita a Igreja por causa da palavra de
Jesus.
Temos um
aliado neste esforço: o fracasso de todas as tentativas do mundo secular para
substituir o Kerygma cristão por outros “gritos” e outros “slogans”. Costumo
usar o exemplo da famosa pintura do pintor norueguês Edvard Munch, intitulada
“O Grito”. Um homem encima duma ponte, sobre um fundo avermelhado, com as mãos
ao redor de sua boca escancarada, emite um grito que, entende-se imediatamente,
é um grito de angústia, um grito vazio, sem palavras, só o som. Parece-me a
descrição mais eficaz da situação do homem moderno que, tendo esquecido o grito
cheio de conteúdo que é o kerygma, se vê obrigado a gritar ao vazio da própria
angústia existencial. Se, como alguém disse, “Deus é a direção à qual o homem
lança seu próprio grito”, então “O Grito” de Munch é, a seu modo, uma oração.
3.
Cristo, nosso contemporâneo
Agora,
deixe-me tentar explicar por que é possível, no Cristianismo, recomeçar, a
qualquer momento, da ponta do navio, sem que isto seja um fingimento mental, ou
uma simples tarefa de arqueologia. A razão é simples: aquele navio ainda navega
o mar e o rastro deixado ainda começa por uma ponta!
Há um
ponto onde eu não concordo com o filósofo Kierkegaard, que também disse coisas
maravilhosas sobre a fé e sobre Jesus. Um dos seus temas favoritos é aquele da
contemporaneidade de Cristo. Mas ele concebe tal contemporaneidade como um
tornar-nos um contemporâneio de Cristo. “Aquele que crê em Cristo – escreve – é
obrigado a fazer-se um contemporâneo seu no rebaixamento.” (S. Kierkegaard,
Exercício do cristianismo, I, E, in Opere, aos cuidades de C. Fabro, Florença
1972, p. 708) A idéia é que para acreditar realmente, com a mesma fé exigida
aos apóstolos, é necessário prescindir dos dois mil anos de história e de
confirmações sobre Cristo e colocar-se no lugar daqueles a quem Jesus dirigia
sua palavra: “Vinde a mim, vós todos que estais cansados e sobrecarregados e eu vos aliviarei “(Mateus 11, 28). Logo ele,
um homem que não tinha uma pedra onde repousar a cabeça!
A
verdadeira contemporaneidade de Cristo é outra coisa: é ele que se faz nosso
contemporâneo, porque, tendo ressuscitado, vive no Espírito e na Igreja. Se nós
nos fôssemos fazer contemporâneos de Cristo, seria uma contemporaneidade só
intencional; mas, se é Cristo que se faz contemporâneio nosso, então é uma
contemporaneidade real. De acordo com um pensamento arrojado da espiritualidade
ortodoxa, “a anamnese é uma lembrança alegre que torna o passado ainda mais
presente do que quando foi vivido.”Não é um exagero. Na celebração litúrgica da
Missa, o evento da morte e ressurreição de Cristo se torna mais real para mim
do que era na verdade para aqueles que testemunharam materialmente o evento,
porque então havia uma presença “segundo a carne”, agora se trata de uma
presença “segundo o Espírito”.
O mesmo
quando se proclama com fé: “Cristo morreu pelos meus pecados, ressuscitou para
a minha justificação, ele é o Senhor”. Um autor do século IV escreve: “Para
cada homem, o princípio da vida é aquele, a partir do qual Cristo foi imolado
por ele. Mas Cristo foi imolado por ele no momento em que ele reconhece a graça
e se torna consciente da vida que lhe foi dada daquela imolação”.( Homilia
pasqual do ano 387 , SCh 36, p. 59 s.)
Percebo
que não é fácil e talvez nem mesmo possível dizer essas coisas para as pessoas,
muito menos ao mundo secularizado de hoje; mas é o que nós, evangelizadores,
temos que ter bem claro para tirar coragem disso e crer na palavra do
evangelista João que diz: “Aquele que está em vocês é mais forte do que aquele
que está no mundo” (1 Jo 4, 4).
4. Os
leigos, protagonistas da evangelização
Dizia no
início que, do ponto de vista dos protagonistas, a novidade, na atual fase da
evangelização, são os leigos. Do seu papel na evangelização trataram o concílio
na “Apostolicam Actuositatem”, Paulo VI na “Evangelii Nuntiandi”, João Paulo II
na “Christifideles laici.”
As
premissas desta chamada universal à missão já estão no Evangelho. Após o
primeiro envio dos apóstolos em missão, Jesus, lê-se no Evangelho de Lucas,
“designou outros setenta e dois, e os enviou dois a dois à sua frente a toda
cidade e lugar aonde ele próprio devia ir” (Lc 10, 1). Esses setenta e dois
discípulos foram provavelmente todos aqueles que ele tinha reunido até aquele
momento, ou ao menos todos aqueles que estavam dispostos a comprometer-se seriamente
por ele. Jesus, portanto, envia todos os seus discípulos.
Conheci
um leigo dos Estados Unidos, pai de família, que, ao lado da sua profissão,
desempenha também uma evangelização intensa. É um sujeito bem-humorado e que
evangeliza ao som de estrondosas gargalhadas, como só os americanos sabem
fazer. Quando ele vai para um lugar novo, começa dizendo muito sério: “Dois mil
e quinhentos bispos, reunidos no Vaticano, pediram-me para vir e anunciar-vos o
evangelho”. As pessoas ficam naturalmente curiosas. Ele então explica que os
2.500 bispos são aqueles que participaram no Concílio Vaticano II e escreveram
o decreto sobre o apostolado dos leigos (Apostolicam Actuositatem), que convida
todos os leigos cristãos a participarem na missão evangelizadora da Igreja. E
estava absolutamente certo de dizer “me pediram.” Essas palavras não são
faladas ao vento, para todos e para ninguém; são dirigidas pessoalmente a cada
leigo católico.
Hoje
conhecemos a energia nuclear que se libera da “fissão” do átomo. Um átomo de
urânio é bombardeado e “partido” em dois pelo impacto de uma partícula chamada
nêutron, liberando energia neste processo. Começa daí uma reação em cadeia. Os
dois novos elementos “fissionam”, ou seja, partem-se por sua vez, dois outros
átomos, estes outros quatro, e assim por bilhões de átomos, de modo que a
energia “liberada” no final, é imensa. E não necessariamente energia
destrutiva, porque a energia nuclear também pode ser usada para fins pacíficos,
em favor do homem.
Neste
sentido, podemos dizer que os leigos são um tipo de energia nuclear da Igreja
no plano espiritual. Um leigo alcançado pelo Evangelho, vivendo ao lado de
outros, pode “contagiar” outros dois, estes, outros quatro, e como os leigos
cristãos não são só algumas dezenas de milhares como o clero, mas centenas de
milhões, eles podem realmente desempenhar um papel decisivo na difusão, no
mundo, da luz benéfica do Evangelho.
Do
apostolado dos leigos não se começou a falar somente com o Concílio Vaticano
II. Já se falava há tempo. O que, no entanto, o concílio contribuiu foi o
título com o qual os leigos contribuem no apostalado da hierarquia. Eles não
são meros colaboradores chamados a dar o seu contributo profissional, o seu
tempo e os seus recursos; são portadores de carismas, com os quais, diz a Lumen
Gentium, estão aptos e prontos para assumirem obras e ofícios, úteis na
renovação e à maior expansão da Igreja”. (L.G., 12)
Jesus
quis que seus apóstolos fossem pastores de ovelhas e pescadores de homens. Para
nós, do clero, é mais fácil ser pastores que pescadores; ou seja, alimentar com
a palavra e com os sacramentos aqueles que veem à Igreja, e não ir em busca dos
que estão distantes, nos ambientes mais diferentes da vida. A parábola da
ovelha perdida se inverteu hoje em dia: noventa e nove ovelhas se distanciaram
e uma só permaneceu no redil. O perigo que temos é de passarmos todo o tempo
alimentando esta única que permaneceu e de não ter tempo, até mesmo pela falta
de clero, para ir em busca das perdidas. Nisso a contribuição dos leigos se faz
providencial.
A
realização mais avançada neste sentido são os movimentos eclesiais. A sua
contribuição específica para a evangelização é de oferecer aos adultos uma
oportunidade de redescobrir o seu batismo e se tornarem membros ativos e
engajados da Igreja. Muitas conversões de adultos e a volta à prática religiosa
de “cristãos de nome” acontecem hoje dentro desses movimentos. Um dos
propósitos do Congresso sobre a evangelização, ocorrido no passado mês de
Outubro, foi justamente, eu acho, aquele de coletar as várias e originais
formas de evangelização experimentadas por eles.
Recentemente,
o Santo Padre Bento XVI voltou sobre a importância da família em vista da
evangelização, falando de um “protagonismo” das famílias cristãs neste campo.
“Como estão relacionados o eclipse de Deus e a crise da família, dizia, assim a
nova evangelização é inseparável da família cristã”. (Bento XVI, discurso à
Plenária do Pontifício Conselho para a família, no “L’Osservatore Romano”, 2
Dezembro, p.8.)
Comentando
o texto de Lucas, onde se diz que Jesus “designou outros setenta e dois e os
enviou dois a dois à sua frente a cada cidade e lugar aonde ele próprio devia
ir ” (Lc 10, 1), São Gregório Magno escreve que os envia dois a dois , “porque
menos que entre dois não pode haver amor”, e o amor é aquilo pelo qual os
homens poderão reconhecer que somos discípulos de Cristo. Isso se aplica a
todos, mas de uma maneira especial para dois: pai e mãe. Se eles já não podem
fazer nada mais para ajudar seus filhos na fé, já fariam muito se, olhando para
eles, seus filhos pudessem dizer entre si: “Vejam como papai e mamãe se amam “.
“O amor é de Deus”, diz a Escritura (1 Jo 4, 7) e isso explica por que onde
quer que haja um pouco de amor “verdadeiro, ali, Deus é sempre anunciado.
A primeira
evangelização começa dentro das paredes de casa. A um jovem que lhe perguntava
o que deveria fazer para ser salvo, Jesus dizia: “Vai, vende o que tens e dá
aos pobres …, depois vem e segue-me” (Mc 10, 21); mas a outro jovem que queria
deixar tudo e segui-lo, não o permitiu, mas lhe disse: “Vai para tua casa e
para os teus e anuncia-lhes tudo o que fez por ti o Senhor na sua misericórdia”
(Mc 5, 19).
Há um
famoso canto espiritual negro intitulado “There is a balm in Gilead” “Há um
bálsamo em Gilead” Algumas das suas palavras podem incentivar os leigos, e não
somente eles, na tarefa da evangelização de pessoa a pessoa, de porta em porta.
Diz:
“If you cannot preach like Peter, if you cannot preach
like Paul, go home and tell your neighbor that Jesus died for all”.
“Se você
não sabe pregar como Pedro, se você não sabe pregar como Paulo, vai para tua
casa” e diga “a seus vizinhos: Jesus morreu por nós!”
Daqui a
dois dias é Natal. É reconfortante para os irmãos leigos lembrar que ao redor
da manjedoura de Jesus, além de Maria e José, estavam os seus representantes,
os pastores e os magos.
O Natal
no leva de volta à ponta da ponta do rastro do navio, porque tudo começou a
partir daí, daquela criança na manjedoura. Na liturgia escutaremos proclamar
“Hodie Christus Natus est, hodie Salvator apparuit”, “Hoje Cristo nasceu, hoje
o Salvador apareceu”. Ouvindo-os, repensamos aquilo que dissemos da anamnese
que torna o evento mais presente do que quando aconteceu pela primeira vez”.
Sim, Cristo nasce hoje, porque ele realmente nasce para mim no momento que
reconheço e creio no mistério. “O que me aproveita que Cristo tenha nascido uma
vez em Belém, se não nascer de novo pela fé em meu coração?” São palavras
pronunciadas por Orígenes e repetidas por Santo Agostinho e São Bernardo.
(Orígenes, Comentário ao Evangelho de Lucas, 22,3 (SCh. 87, p. 302).
Façamos
nossa a invocação escolhida pelo nosso Santo Padre para os seus votos
natalícios desse ano e repitamos com todo o anseio do coração: fazemos nossa a
invocação próprios escolhidos pelo nosso Santo Padre para o seu cartão de Natal
deste ano e repeti-lo com todo o anseio do coração: “Veni ad salvandum nos”,
Vem, Senhor, e salva-nos!
FONTE: Padre Raniero Cantalamessa.
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